Em 5 de fevereiro de 2009, eu bloguei sobre o sermão religioso, quero dizer, reportagem da revista Época, em que o autor, anônimo na reportagem, tece inúmeras loas ao CU - Cadastro Único. Bem, aquilo mais parecia um press release do Ministério da Justiça conjugado com sermão da Seita do Identitismo.
Hoje, almoçando, vim a calhar de ler a edição 624 desta mesma revista. Esta edição tem uma reportagem com o nome "O Cartão que virou cartolina" sobre o fracasso do Cartão Nacional de Saúde, uma tentativa do governo federal de acabar com a privacidade dos usuários do SUS. A reportagem começa com as metas mirabolantes do sistema cujo cartão:
[D]aria acesso em tempo real a informações sobre o atendimento prestado a cada paciente desde o nascimento. Teria registros de consultas, exames e da medicação prescrita durante toda a vida.
Como diz a reportagem sobre o fim do sistema:
Ambiciosa para seu tempo, a ideia se mostrou cara e inviável diante de obstáculos impostos por diferenças regionais, suspeitas de fraudes em licitações e resistência dos profissionais da saúde.
Não é a primeira vez que a classe médica opõe-se a tal sistema, como eu já bloguei, a Associação Médica Britânica pediu boicote a sistema semelhante no Reino Unido para seus membros. Quanto a parte de custos, que no Brasil ficou em poucos R$ 418 milhões, as experiências britânicas, australianas e canadenses também nos mostram que estes sistemas falidos custam muito dinheiro. Além disso, a parafernália de apoio ao sistema apodrece em almoxarifados e o governo sequer ter uma estimativa confiável de quantos cartões foram emitidos. Isto é semelhante ao que ocorreu com o Projeto Presença. Tanto no Cartão Nacional do SUS como no Projeto Presença, a tequinolojia (termo que deve ser empregado em ambos os casos) dava muitos problemas e como já é praxe, cada ente da Federação empurrava o problema para outro.
Depois tivemos problemas na licitação, ou seja, suspeitas de fraude, problemas na transmissão de dados e problemas na emissão dos cartões; como diz Sônia Machado, da Secretaria de Saúde de SC, [o]s terminais foram um presente de grego”. Presente de grego este que o Ministério da Saúde recusou-se a receber de volta.
Com isso tudo, uma auditoria do TCU disse que o projeto transformou numa lista de usuários do SUS e nada mais. Curiosamente, ou não (trato disto no final), os srs. Rocha, Ramos e a sra. Lemos não conseguiram nem ler nem citar o acórdão 461/2004 do mesmo tribunal sobre a escandalosamente frouxa política de segurança de informação do DataSUS, o pretenso gestor do Cartão Nacional de Saúde.
Antes do fim, temos o ceticismo do presidente do Conselho Nacional da Saúde:
Apesar das alegações do Ministério da Saúde de que providências foram tomadas para corrigir o programa, há ceticismo entre os profissionais em relação ao êxito das medidas. “O problema é que o governo está no fim, e não saberemos se uma solução será encontrada até lá”, afirma o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior. “A situação torna-se ainda mais grave porque muito dinheiro já foi investido no cartão do SUS sem que o retorno tenha sido alcançado.” Batista diz que, para piorar, ninguém foi punido pela má aplicação dos R$ 418,6 milhões.
Calma! Isto é uma reportagem de Época portanto o último parágrafo é um manifesto de fé:
O cartão do SUS é um projeto ousado, que começou no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e foi mantido no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ainda não ficou de pé. Agora, às vésperas de uma nova mudança no comando do país, o Ministério da Saúde anuncia um novo sistema, que aparentemente não será concluído até o fim do ano. A primeira tentativa de implantação do cartão do SUS não deu certo. Espera-se que essa nova tentativa seja mais bem-sucedida.
Eu acredito que este tipo de encerramento deve estar prescrito no Manual de Estilo da dita revista. Ao contrário da reportagem sobre o CU, esta em nenhum momento mencionou a questão da privacidade dos usuários do SUS (na reportagem sobre o CU, o pseudocontraponto levando em conta a privacidade trazia a opinião de alguém que é favorável ao dito cadastro único). Até, em razão disto, que eu não esperava que o trio fizesse uma análise profunda e documentada sobre os riscos à privacidade dos usuários nem as reações contrárias a este tipo de sistema pela mesma razão em outros locais do mundo.
Mais um exemplo da incapacidade dos governos em gerenciar informações pessoais.
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