O Ministério Público Federal de Goiás entrou com uma Ação Civil Pública (26798-86.2012.4.01.3500) contra o Conselho Federal de Medicina para acabar com o sigilo médico de prontuários de pessoas mortas em relação aos seus parentes; tal ação tem alvo a Nota Técnica 2/2012, o Parecer 6/2010 (já comentado neste blog) e a Resolução 1605/2000, todos do CFM.
Diz a notícia que o MPF de Goiás tentou uma "solução amigável" (seja lá o que isto pode significar) e teve como resposta o Parecer 6/2010, que a notícia coloca entre aspas (não me pergunte o motivo). Aí começa um festival, para começar:
Na interpretação equivocada do CFM, o direito ao sigilo, garantido por lei ao paciente vivo, deveria ser mantido após a morte como decorrência da preservação dos direitos de personalidade.
Bom, qual é a lei que diz que após a morte de alguém, liberou geral? E agora, preparai-vos que lá vem:
Na visão do MPF, há uma inversão da lógica jurídica na decisão do CFM ao depositar no médico a responsabilidade de preservar a personalidade do paciente falecido e não na família. “A manutenção do sigilo de prontuários pelos médicos não tem o condão de proteger os direitos de personalidade do paciente, mas afastar desses o dever de prestar contas das suas ações e omissões ilícitas a quem de direito: os sucessores legítimos do paciente falecido”, argumenta Ailton Benedito. (grifo meu)
Sim, o que eles querem dizer que o sigilo do prontuário não tem nada a ver com os direitos do paciente mas sim com uma hipotética ação ilegal do médico em questão. Pelo raciocínio, o sigilo médico não existe para embasar uma necessária relação de confiança entre o médico e o paciente mas sim proteger o médico de "prestar contas das suas ações e omissões ilícitas". Faltou bem pouco dizer que o sigilo médico é um problema. Agora, tu imaginas como que um psiquiatra pode trabalhar com um paciente, se este paciente morrer a família tiver acesso a tudo que o paciente dise? Nós poderíamos decretar o fim da psiquiatria pois muitos não se sentiriam seguros se aquilo que for dito para o psiquiatra for de livre acesso após a sua morte. Isto também poderia ser aplicado a outras áreas da medicina, ou também na psicologia e outras ciências da saúde.
Como diz o parecer que deixou o MPF de Goiás ouriçado:
Conclui-se, dessa forma, que em hipótese alguma deve o hospital ou o médico liberar o prontuário do paciente falecido a quem quer que seja somente pelo fato do requerente ser um parente do de cujus. O parentesco, por si só, não configura a “justa causa” a que se refere o artigo 102 do Código de Ética Médica. Deve-se considerar que, na verdade, em muitas vezes as pessoas que os pacientes menos desejam que saibam de suas intimidades são exatamente os parentes.
Eu adorei esta explicação. Eu não gostaria de ter a minha vida devassada por parentes só pelo fato de eu vestir um pijama de madeira. Não mesmo! E para acabar:
O MPF também quer que a Justiça declare que somente na hipótese de, ainda vivo o paciente, ele declarar expressa e nominalmente que se opõe à liberação de seus prontuários médicos para a família, o sigilo de tais documentos deve ser mantido após a morte.
E como se isto tudo acima não fosse o bastante, o MPF ainda quer que a pessoa peça pela sua privacidade, partindo da presunção de divulgação de dados médicos, sabendo que qualquer política decente de privacidade parte do pressuposto do opt in, ou seja, há uma presunção de proteção ao dado, e não a presunção de divulgação.
E não é apenas o MPF de Goiás que pretende tal acesso. O Ministério Público do Rio Grande do Norte postula tal acesso. E se não bastasse, o PL 3398/2008, do ex-deputado Carlos Bezerra (PMDB - MT) também quer dar livre acesso aos prontuários médicos.
Algumas leituras interessantes:
- Prontuário médico e ordem judicial: em defesa da intimidade de Miguel Kalabaide;
- Guia de sigilo médico de Raphael Piaia e Luiz Piaia Neto;
- O Novo Código de Ética Médica - prontuário médico de Ronald Behrens e
- O novo Código de Ética Médica e os limites impostos pelo Judiciário do Superior Tribunal de Justiça.
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