O Ministério Público Federal de São Paulo (para variar) resolveu atacar o sigilo das informações do censo. Uma aula rápida antes: a Lei 5.534/1968 diz o seguinte:
Art. 1º Tôda pessoa natural ou jurídica de direito público ou de direito privado que esteja sob a jurisdição da lei brasileira é obrigada a prestar as informações solicitadas pela Fundação IBGE para a execução do Plano Nacional de Estatística (Decreto-lei nº 161, de 13 de fevereiro de 1967, art. 2º, § 2º).
Parágrafo único. As informações prestadas terão caráter sigiloso, serão usadas exclusivamente para fins estatísticos, e não poderão ser objeto de certidão, nem, em hipótese alguma, servirão de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial, excetuado, apenas, no que resultar de infração a dispositivos desta lei. (grifo meu)
Baseado nesta lei, o IBGE recusou-se a prestar informações à Promotoria da Infância e da Juventude da cidade de Bauru, SP sobre 45 crianças menores de dez anos de idade que não possuem registro de nascimento; informações esta do Censo 2010. De acordo com o Promotor de Infância e Juventude daquela cidade, Lucas de Oliveira:
A legislação que garante este sigilo é antiga, da época da ditadura. Ter acesso a estes dados seria fundamental para que o MP pudesse agir.
Sr. Oliveira, o que isto quer dizer? Que a ditadura tinha maior apreço pela privacidade do que o dito "Estado Democrático de Direito"? Ou então que todas as leis daquele período são inválidas? E vamos para a segunda premissa, outro primor intelectual. Desde quando que a falta de acesso a estes dados impede o Ministério Público de agir (presumindo que seja do MP a competência de arregimentar crianças aos registros de nascimento? O governo federal tem um programa para tal propósito e em nenhum momento cogitou-se acessar tais dados, que foram coletados pela primeira vez.
O blablablá sobre "ação" também se faz presente na fala do sr. Pedro Machado, o procurador federal que está processando o IBGE. O sr. Machado é contra a:
Eu só poderia interpretar isto como se os agentes do censo estivessem impedindo os pais das tais 45 crianças de entrar no cartório, ou funcionários do IBGE impedindo diligências para realização de tais registros. Em nenhum momento os srs. Oliveira e Machado conseguiram provar que a denegação de acesso aos questionários do censo impede o registro de tais crianças. E nem poderiam! Os dois atos são independentes entre si; um não depende do outro: não há necessidade de ter certidão de nascimento para se prospectado pelo censo, nem a obrigação de comprovar a participação no censo para obtenção do registro de nascimento.
Neste meio tempo, temos até um discurso contraditório da sra. Darlene Tendolo, secretária de Bem-Estar Social de Bauru. Para o jornal Bom Dia, ela diz:
Para o Jornal da Cidade de Bauru, o discurso não é exatamente igual:
Sra. Tendolo, decide-te, por favor. Porque, vamos combinar, negar uma vacina para uma criança porque ela não tem uma trouxa folha A4 é uma mistura de crueldade estatal com burrice em vigilância sanitária. E claro que a sra. Tendolo nunca conseguirira provar a relação entre uma pessoa não ter registro de nascimento e, sei lá, performance educacional, pois todo mundo sabe que só se exige certidão de nascimento de crianças em escolar porque o governo assim demanda. Aquele papel nada tem a ver com as aptidões da criança em aprender nem com a estrutura educacional a ser oferecida para tal criança não-registrada. Bom, se até Harvard aceita imigrantes ilegais, por que não deixar uma criança sem certidão de nascimento frequentar uma escola?
E depois sra. Tendolo fala de questões culturais:
Não existe uma "cultura do documento" no Brasil? A senhora então me explique por que estavam exigindo documentos de identidade com foto para pessoas idosas poderem comprar bebida alcóolica no supermercado? E isto no estado que a senhora vive. Quanto a expressão relativa às pessoas saírem de casa sem documentos de identidade, aí vai um lembrente: ninguém é obrigado a sair de casa com documento de identidade ou coisa do gênero, então faz sentido uma pessoa sair sem lenço, nem documento (como se diz) quando ela não precisa usar tal documento.
Agora vamos discutir o caso em si. Primeiro, tem a questão da legalidade do pedido. A despeito da lei proibir o uso dos dados informados ao censo, o procurador e o promotor do caso simplesmente acham que podem desconsiderar tal proibição por mera opinião pessoal. Mais, há uma investigação sobre a recusa:
Se ficar, o bicho pega, se correr, o bicho come. Como pode haver crime de desobediência quando eles estão sujeitos à penalidades se divulgarem tais informações? Eles têm o dever de sigilo. E como diz o 6º Princípio Fundamental de Estatísticas Oficiais da ONU:
Existe uma razão de ser para isto: é garantir a máxima honestidade possível nas resposta, pois a função é compilar dados os mais precisos possíveis para um melhor embasamento de decisões públicas e privadas. Tu imaginas o que aconteceria se as pessoas soubessem que o Ministério Público, Receita Federal, a banca do sistema de cotas da UnB ou outros tivessem algum tipo de acesso aos formulários preenchidos do censo. Haveria um descrédito do sistema aliado com o aumento de respostas inverídicas.
E continuando com as alegações do Ministério Público, recomendo um artigo do dr. Lênio Streck sobre a literalidade da lei:
Para inteira-me melhor do caso, resolvi fazer dois pedidos de informação ao Ministério Público do Estado de São Paulo e ao Ministério Público Federal em São Paulo, pois em plena vigência da Lei de Acesso à Informação, o cidadão ainda precisa pedir coisas que deveriam estar disponíveis como petições iniciais e correspondências entre órgãos do governo.
O blablablá sobre "ação" também se faz presente na fala do sr. Pedro Machado, o procurador federal que está processando o IBGE. O sr. Machado é contra a:
[I]nsistência do IBGE em impedir que o Ministério Público ponha fim à situação de negligência a que estão submetidas essas crianças pelos pais ou responsáveis, seja por conduta dolosa, culposa ou por eventuais dificuldades sociais.
Neste meio tempo, temos até um discurso contraditório da sra. Darlene Tendolo, secretária de Bem-Estar Social de Bauru. Para o jornal Bom Dia, ela diz:
Hoje, por exemplo, os programas sociais do governo não aceitam mais que a pessoa não tenha.
Mas vale ressaltar que, mesmo sem registro, as crianças continuam tendo acesso aos serviços da assistência social e de saúde (incluindo todo o programa nacional de vacinação)
E depois sra. Tendolo fala de questões culturais:
Para ela, a falta de conhecimento e de uma “cultura do documento” faz com que ainda existam pessoas sem documentação. “É comum as pessoas saírem à rua sem documento no bolso e isso reflete que nós não temos a noção da importancia do documento. É essa carência de conhecimento que faz com que ainda existam crianças sem certidão”, diz.
Agora vamos discutir o caso em si. Primeiro, tem a questão da legalidade do pedido. A despeito da lei proibir o uso dos dados informados ao censo, o procurador e o promotor do caso simplesmente acham que podem desconsiderar tal proibição por mera opinião pessoal. Mais, há uma investigação sobre a recusa:
“Inicialmente, será instaurada uma peça de informação para analisar eventual crime de prevaricação e desobediência por parte dos funcionários do IBGE, porque eles se recusaram a prestar informações para o juiz e o promotor da Infância e Juventude”, adianta. Se a conclusão for de que houve prática de crime, o instituto poderá ser denunciado.
Individual data collected by statistical agencies for statistical compilation, whether they refer to natural or legal persons, are to be strictly confidential and used exclusively for statistical purposes.
E continuando com as alegações do Ministério Público, recomendo um artigo do dr. Lênio Streck sobre a literalidade da lei:
“Positivismo”: a algaravia
Participava de uma banca de mestrado em que um aluno defendia uma dissertação sobre hermenêutica. Uma importante professora, também convidada para a arguição, no entremeio de uma discussão em que eu defendia a aplicação do artigo 212 do Código de Processo Penal (eu cheguei à “ousadia” de invocar a “literalidade” do dispositivo), aparteou-me dizendo: “mas você está sendo positivista, ao defender a aplicação da ‘letra da lei’.”). Fiquei impressionado com a “admoestação
(...)
Minha resposta
Invoquei, na discussão com a professora — e continuo invocando — os limites da jurisdição. Para ser mais simples: em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?
Parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do Direito e o papel da jurisdição constitucional (embora tanto escrevamos sobre isso!). Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes” (sic): aquele que se “apega” à letra fria (sic) da lei (e esse deve “desaparecer”, segundo essa “crítica”) e aquele que julga conforme os “princípios” (esse é o juiz que traduziria os “valores” — sic — da sociedade, que estariam “por debaixo” da “letra fria da lei”). Por isso, pergunto: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios?
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