Em abril de 2017, eu noticiei que o Tribunal Regional Federal da Terceira Região aceitou um recurso do Ministério Público Federal de São Paulo e obrigou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a franquear acesso aos dados do censo ao MPF-SP sobre subregistros de nascimentos na região de Bauru. Tal decisão acabaria com o sigilo dos dados do censo no Brasil, traria riscos gravíssimos para o nível de veracidade das respostas e abriria caminho para outros órgãos fazerem pedidos semelhantes. Como eu disse em 2017:
E mais, as tais 45 crianças não registradas em Bauru representam uma realidade de 2010! Já se passaram quase sete anos dessa disputa judicial. É bem provável que o número de crianças não registradas numa área urbana de uma cidade razoavelmente rica tenha diminuído ou ter chegado a zero.
(...)
Espero que a Advocacia-Geral da União entre com um recurso.
Pois bem. Houve esse recurso. E ele foi aceito no STF. E as minhas duas teses, a primeira, de que passado o censo de 2010 tal número de 45 crianças sem certidão de nascimento teria diminuido por outros motivos e a segunda, que haveria sérios riscos à confiança e a veracidade dos dados prestados ao IBGE foram aceitas na Suspensão de Liminar 1103:
Como destacado pelo Requerente, o censo realizado em 2010 identificou 45 crianças no Município de Bauru/SP que, naquela data, não tiveram seu direito fundamental ao registro civil gratuito concretizado pelo Estado. A partir dessa informação, cuja veracidade credita à certeza depositada pelo entrevistado no sigilo de seus dados, foi possível identificar o problema e elaborar políticas públicas para solucioná-lo, o que possivelmente não ocorreria se o entrevistado, temendo consequências de sua omissão, prestasse informações inverídicas. Ademais, passados sete anos da realização do censo, essas crianças possivelmente já terão obtido seu registro civil, por ser ele indispensável para a matrícula escolar e para o cadastro em programas sociais oferecidos nos planos municipal, estadual e federal. Nesse cenário, o cumprimento da determinação judicial de prestar as informações requisitadas pelo Ministério Público Federal, mediante o afastamento excepcional do sigilo estatístico, surge como grave precedente e parece ganhar contornos extravagantes.
(...)
Assim, o exame preliminar e superficial da causa conduz a reconhecer que o afastamento do sigilo estatístico imposto pela decisão contrastada dispõe de potencialidade lesiva à ordem pública, por abalar a confiança daqueles que prestam as informações aos entrevistadores do IBGE, comprometendo a fidelidade e veracidade dos dados fornecidos e, por conseguinte, a própria finalidade daquele Instituto, a subsidiar a elaboração de políticas públicas em benefício da sociedade.
Como era de se esperar, o Ministério Público Federal recorreu de tal Suspensão de Liminar, e, sem surpresas, há aquela clássica inversão de valores típica da Seita do Identitismo:
Nesse passo, o exercício da cidadania, franqueado pelo necessário registro civil, revela-se como um dos direitos mais básicos do ser humano, porquanto instrumentaliza a pessoa para o exercício de todos os demais direitos fundamentais daí decorrentes.
Ora, a ausência do registro de nascimento tolhe a pessoa no seu direito ao exercício da cidadania, pois a impede de ter acesso aos serviços públicos sociais mais básicos e essenciais, de forma que ela fica mantida à margem da sociedade e se mostra inexistente para o Estado.
Quem impõe barreiras ao "exercício da cidadania" é o próprio Estado. Uma criança é intelectualmente incapaz de aprender sem uma certidão de nascimento? Não. A falta de uma certidão de nascimento impede a anamnese ou a realização de exames clínicos? Também não. Ou seja, as barreiras criadas em torno da posse de documentos de identificação nada mais são do dificuldades criadas pelo Estado, não uma exigência inerente para o "exercício de todos os demais direitos fundamentais".
De toda a forma, a Suspensão de Liminar continua ativa.
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