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TRF3 resolve acabar com o sigilo censitário

Lá pelos idos de 2012, a Procuradoria da República em São Paulo teve uma ideia absurda de exigir a quebra do sigilo de dados coletados pelo censo mesmo com a existência do art. 1º da Lei 5.534/1968, que diz o seguinte:
Art. 1º Tôda pessoa natural ou jurídica de direito público ou de direito privado que esteja sob a jurisdição da lei brasileira é obrigada a prestar as informações solicitadas pela Fundação IBGE para a execução do Plano Nacional de Estatística (Decreto-lei nº 161, de 13 de fevereiro de 1967, art. 2º, § 2º).
        Parágrafo único. As informações prestadas terão caráter sigiloso, serão usadas exclusivamente para fins estatísticos, e não poderão ser objeto de certidão, nem, em hipótese alguma, servirão de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial, excetuado, apenas, no que resultar de infração a dispositivos desta lei.
A redação do parágrafo único não pode ser mais clara em dizer que "em hipótese alguma" far-se-á certidão das informações coletadas ou será tais informações usadas em "processo administrativo, fiscal ou judicial". Mas isso não impediu o Ministério Público Federal em exigir informações sobre 45 crianças sem certidão de nascimento.

No fim do ano de 2012, o pedido foi considerado, corretamente, improcedente. Mas houve um recurso, e, bem, as coisas caminharam para outra direção. Em primeiro lugar, a constitucionalidade do tal art. 1º e seu parágrafo único foram acolhidos pelo Tribunal Regional Federal da Terceira Região:
Nesse passo, as pesquisas realizadas pelo IBGE se revelam de suma importância para o alcance dos objetivos traçados na Carta Maior, porque, ao identificarem os potenciais e as carências dos diversos setores da sociedade, as informações servem de base para a elaboração das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento nacional e à melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.
É certo que o sigilo assegurado por lei influi no resultado das pesquisas e, consequentemente, nas políticas públicas a partir delas implementadas, pois contribui para a veracidade das informações prestadas pelo cidadão, o qual tem a segurança de que tais informações estarão protegidas.
Sob tal ótica, entendo que as normas em questão foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988.
Depois disso, entra em ação as palavras mágicas do Direito no Brasil: "ponderação" e "dignidade da pessoa humana (sic)". E claro, uma defesa piegas da existência de certidões de nascimento, como se não fosse o próprio estado que impusesse restrições aos direitos pela falta de uma folha A4. E lembrando que o voto traz pela segunda vez a questão do sigilo das informações censitárias e sua importância:
Como já salientado, as informações colhidas pelo IBGE retratam a realidade socioeconômica do país e norteiam as providências para solucionar os problemas identificados. O dever de sigilo proporciona segurança a quem presta as informações e contribui para a confiabilidade das pesquisas efetuadas.
Traduzindo: as pessoas só informarão dados fideidignos se tiverem a certeza, e a segurança, que as informações prestadas serão usadas unica e exclusivamente para fins estatísticos e não para realização de devassas.

Em seguida há o parágrafo que acaba com o sigilo censitário no Brasil:
Assim sendo, o afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE é medida excepcional, a ser analisada diante de cada caso concreto, assegurando-se dessa forma a manutenção da confiabilidade das pesquisas efetuadas pelo Instituto.
O único senão é que a lei considerada constitucional por esse próprio TRF diz que
[a]s informações prestadas terão caráter sigiloso, serão usadas exclusivamente para fins estatísticos, e não poderão ser objeto de certidão, nem, em hipótese alguma, servirão de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial 
Não existe a tal "medida excepcional" nem análise em "caso concreto", pois a quebra desse sigilo por si só já põe em risco a "confiabilidade das pesquisas". A lei é clara ao dizer que, exceto para investigar declarações fraudulentas nos instrumentos de pesquisa, não é permitido tirar certidão dos dados coletados nem usá-los em processos judiciais.

E lembrando as surreais palavras proferidas à época da propositura da ação:
Mesmo estando amparada por leis ainda (sic) em vigor, o procurador da República  Pedro Antônio de Oliveira Machado considera a postura do IBGE “intolerável (sic)”. Para ele, sem o registro de nascimento essas crianças encontram-se lesadas em seus direitos fundamentais ao nome, à nacionalidade, à personalidade jurídica e à dignidade.
O procurador condenou a “insistência do IBGE em impedir (sic) que o Ministério Público ponha fim à situação de negligência a que estão submetidas essas crianças pelos pais ou responsáveis, seja por conduta dolosa, culposa ou por eventuais dificuldades sociais”.
A ação é tão surreal que a simples aplicação da lei, cuja constitucionalidade foi confirmada em duas instâncias judiciais e que certamente não tem data de validade para aquele "ainda" fazer algum sentido, é considerada "intolerável"! E olha a proposição perigosa, a de que a dignidade de um ser humano depende de um registro. Ou a dignidade, seja lá o que isso possa significar, é algo inerente ao ser humano ou então nada mais passa do que uma concessão dos governantes de plantão. Outra, qual é a personalidade jurídica de alguém que não foi registrado? Uma não-pessoa? E quais seriam as lesões à nacionalidade, se essa é relacionada ao local de nascimento ou parentesco (ambos independente de registro de nascimento) ou ao nome, quando esse é de livre escolha dos pais?

A segunda parte dá a impressão que o IBGE teria o poder de impedir o Ministério Público de fazer diligências referentes ao não-registro de nascimento de alguém que se supõe sem registro de nascimento. Não sei como se daria tal impedimento, mas se formos analisar os número de subregistro no Brasil, o sigilo censitário é totalmente irrelevante para diminuir tal situação. Estes são os dados de subregistro entre 2000 e 2014.

Ou seja, é possível erradicar, o que aconteceu no Brasil, o subregistro sem por em risco o sigilo censitário e a confiança para a prestação de informações fideidignas para os mais variados instrumentos censitários. E mais, as tais 45 crianças não registradas em Bauru representam uma realidade de 2010! Já se passaram quase sete anos dessa disputa judicial. É bem provável que o número de crianças não registradas numa área urbana de uma cidade razoavelmente rica tenha diminuído ou ter chegado a zero. Então,
[o] afastamento excepcional do sigilo, tão somente para a situação fática descrita na exordial, consiste em medida adequada ao fim almejado, necessária e proporcional, por não comprometer a atuação do Instituto e a implementação de políticas públicas
não é uma medida prevista em lei, não é adequada e nem necessária pois existem outros meios de eliminar o subregistro e coloca em risco a confiança que as pessoas têm para poderem reportar dados mais verazes possíveis. Além de abrir a porteira para outros pedidos que atendam o esotérico conceito de "dignidade da pessoa humana (sic)".

Espero que a Advocacia-Geral da União entre com um recurso.

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