Alguém se lembra do cadastro "positivo"? Bom, eu não te culpo. Para aqueles que não conhecem o dito cadastro, dou o resúmo da ópera: o cadastro positivo é um registro de todos os pagamentos que uma pessoa (física ou jurídica) faz durante o tempo que esta está registrada no cadastro, de tal forma a criar uma base de dados que subsidiará a criação duma pontuação ao cadastro. Diz a lenda que tal cadastro soltaria até R$ 1 trilhão em crédito no Brasil, uma modesta quantia que equivaleria a 27% do PIB brasileiro em 2010, data do número mágico de R$ 1 trilhão. Outra lenda relacionada ao cadastro "positivo" seria a redução das taxas de juros no Brasil.
Pois bem, O Globo traz uma interessante reportagem sobre o dito cadastro "positivo" e o conto de fadas da redução das taxas de juros:
Cadastro positivo não garante redução de juros a bons pagadores, indica Idec
- Lei criou banco de dados que deveria baratear taxas em financiamento, mas não tem dispositivo que garanta o benefício
RIO - Em vigor há oito meses, com a promessa de as instituições financeiras baratearem o crédito para o bom pagador, a Lei do Cadastro Positivo (12.414/2011) tem falhado nessa missão. É o que indica pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) junto às três principais empresas de proteção de crédito gestoras do cadastro: Serasa Experian, SPC Brasil e Boa Vista Serviços. Além de os três órgãos não garantirem a redução dos juros de financiamentos, não se responsabilizam pelos dados dos consumidores fornecidos para o banco de dados. Para o Idec, os resultados dessa pesquisa confirmam o que a entidade já previa: o cadastro não traz benefício algum para o consumidor, que ainda corre o risco de ter dados pessoais expostos.(...)O Idec também perguntou se há um sistema de pontuação que classifica os consumidores como bons e maus pagadores. A Boa Vista respondeu que não. Já a Serasa admitiu possuir um banco de dados estatístico, mas reforçou que a decisão de dar ou negar crédito é de quem o concede. “A Serasa não interfere no processo”, complementou. O SPC não respondeu as questões.
(...)
Nesta etapa da pesquisa, os principais problemas detectados foram: o processo para a adesão ao cadastro não é padronizado; as informações não são confiáveis, já que cada atendente informa uma coisa; há muita burocracia; e os sistemas não estão preparados para fazer o compartilhamento de dados com outras gestoras, direito garantido pela lei.
A reportagem é toda interessante e merece ser lida com carinho e dedicação. Curiosamente, um dos "travadores" do cadastro "positivo" é o setor bancário, aquele que iria reduzir as taxas de juros. Como reporta O Estado de S. Paulo:
Bancos ‘travam’ cadastro positivo
Criada há 6 meses, lista de bons pagadores esbarra no comportamento das instituições
30 de janeiro de 2014 | 21h 26
Laís Alegretti e Murilo Rodrigues Alves - O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA - Pedido antigo do setor financeiro para reduzir os juros cobrados nos empréstimos, o cadastro positivo completa seis meses de funcionamento sem adesão significativa dos consumidores. A lista de bons pagadores esbarra no comportamento dos bancos, que não se empenham, como anunciaram, em compartilhar informações sobre seus melhores clientes. O governo, responsável pela regulamentação e implementação do cadastro, evita comentar o assunto.
(...)
No primeiro semestre de 2012, quando o governo aproveitou a redução da Selic à época para implementar uma cruzada contra os juros altos no País, o presidente da Febraban, Murilo Portugal, entregou ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, vinte propostas para a redução do spread bancário, a diferença entre o custo de captação dos bancos e o repassado aos clientes. Entre elas, estava a regulamentação do cadastro de bons pagadores. Na ocasião, Portugal defendeu que as medidas teriam impacto "imediato e direto" no barateamento do crédito. A regulamentação ocorreu no fim do mesmo ano.
Agora, os bancos alegam nos bastidores que, ao repassar as fichas dos clientes que mantêm as contas em dia, "entregam o ouro" para a concorrência. A principal contrariedade em relação ao cadastro positivo, porém, está no trecho da lei que estabelece que há "responsabilidade solidária" nos efeitos do uso dos dados da lista. Esse dispositivo, segundo os bancos, dá margem para que eles respondam por mau uso das informações feito por outra empresa.
(...)
Para a Febraban, a baixa adesão ao Cadastro Positivo é culpa do consumidor. "A adesão observada até agora é reflexo do interesse do consumidor por ter seus dados incluídos em um novo cadastro", apontou a instituição em nota. (grifo meu)
Salvo se a língua portuguesa sofreu algum tipo de inversão de significados eu não vejo nada de "imediato" e/ou "direto" nas taxas de juro. Uma das empresas que fornecem o serviço de cadastro "positivo", a BoaVista editou a publicação Mercados com muitas informações sobre o cadastro. Comecemos com a entrevista do Dr. Paulo Rabello de Castro:
Algumas instituições e segmentos da sociedade criticam o cadastro Positivo, dizendo que ele viola a privacidade do cidadão. Em sua opinião, isso é ou não é verdade?
Claro que não é verdade. na era da internet, essa afirmação é quase uma piada, porque as nossas ações já são praticamente todas registradas. O indivíduo já está mapeado, o celular dele está registrando por onde ele anda, todas as chamadas telefônicas já estão registradas, mesmo que ele não queira. a conclusão final é que é relativamente irrelevante esconder qualquer coisa no mundo atual. A privacidade na realidade é o decoro, é o direito do indivíduo de fechar a porta de casa e ficar lá dentro confortavelmente. Eu acho que o Cadastro positivo dá a possibilidade de se ter acesso à informação quando quiser e apenas àquela que for de interesse do próprio usuário.
O Dr. Castro tem uma visão um tanto inovadora em relação à língua portuguesa, tal como o Sr. Portugal. Para o Dr. Castro privacidade é decoro e ficar confortavelmente dentro de casa; sim, ele só faltou dizer que privacidade é conforto doméstico! E se "esconder qualquer coisa" (atentai-vos para o qualquer) é algo "relativamente irrelevante", por que o Dr. Castro não publica as informações sobre si no cadastro "positivo", ou então, o tal e-mail que ele enviou para um presidente de algum banco para diminuir os juros dum empréstimo imobiliário? Seguindo, temos a entrevista com o Sr. Victor Loyola, um vice-presidente do Citibank à época da publicação:
Em que medida o cadastro Positivo é bom para o País?Se o Cadastro tivesse sido de fato instituído no Brasil, os juros dos estabelecimentos financeiros, só para citar um exemplo, já teriam baixado há um bom tempo
Bom, o cadastro "positivo" já está instituído no Brasil "há um bom tempo". Só a taxa de juros que continua praticamente a mesma "há um bom tempo"! E temos mais outra entrevista, agora com o Sr. Rogério Amato, atual Secretário de Desenvolvimento Social do estado de SP:
Algumas instituições e segmentos da sociedade criticam o cadastro Positivo afirmando que a privacidade do cidadão é violada. isso é ou não é verdade? Por quê?Não é verdade. Obter uma informação sobre crédito é muito antigo e extremamente necessário. Quando se tem uma economia incipiente e se pretende realizar uma transação comercial, você busca informações dessa pessoa. você não casa com alguém sem saber nada sobre essa pessoa, certo? O Cadastro é o mesmo processo: o comércio é o dia a dia de um casamento. Quando você tem um cliente, ele está permanentemente comprando de alguém. Assim, é preciso ter informações constantes sobre ele. No entanto, com 7 bilhões de pessoas no mundo, é preciso se adaptar à realidade e achar maneiras de realizar esse controle.
Essa é novidade para mim, talvez os birôs de crédito tenham sido inventados na época dos faraós no Egito. Para que conste, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa diz que o significado de incipiente é "que inicia, que está no começo; inicial, iniciante, principiante". Então, Sr. Amato, se a economia brasileira deixar de ser "principiante", dá para dispensar o cadastro "positivo"? E sem falar neste consumidor que "está permanentemente comprando". E para finalizar, a modesta proposta de controlar sete bilhões de pessoas no mundo, como se o padrão de consumo dum qualquer trabalhando numa mina em Hyesan fosse minimamente relevante para o comércio em Treze Tílias, SC.
E se tu ainda tens dúvidas sobre o real propósito desta publicação:
Privacidade na perspectiva do consumidor
O nível de concordância com a frase
“... porque hoje já não existe privacidade, uma vez que as operadoras de cartão de crédito, bancos e financeiras já sabem o que pagamos ou deixamos de pagar” é maior nas classes mais altas (novamente pode ser consequência do nível de bancarização). Os percentuais caem significativamente até a classe DE, com 54% de concordância, devido à menor familiaridade com esse cenário.
O conceito de privacidade foi para o espaço já que bancos e congêneros sabem o que nós pagamos ou deixamos de pagar. Ora, este é o seu negócio. Não faria sentido algum um banco saber o que eu visto, ou uma loja de roupa saber o que eu consumo no supermercado. Privacidade é a capacidade que alguém tem em controlar o fluxo de informações que lhe dizem respeito.
E se previsões fabulosas de queda de juros não são o bastante, temos a peculiar data para inclusão de todos os brasileiros, eu disse todos, em cadastros "positivos". Reporta Exame:
Clientes de bancos, varejistas e companhias de serviço público precisam dar autorização para que suas informações sejam compartilhadas. “Nosso objetivo é cadastrar todos os brasileiros em dois anos”, diz Ricardo Loureiro, presidente da Serasa Experian. A expectativa é que as pessoas reconheçam as vantagens de participar.
A despeito do fim da privacidade e coisas do gênero, não há muitas estatísticas sobre o cadastro "positivo", o que me faz bem cético sobre este prazo de dois anos para inserir 200 milhões de pessoas em bancos de dados creditíceos. Assim como são parcos os dados que confirme o conto de fadas da redução das taxas de juros graças ao cadastro "positivo" no Brasil.
Sejamos honestos. O tal cadastro "positivo" nada mais é do que uma forma de criar bancos de dados de preferências pessoais, algo que é bem difícil com a lógica dos cadastros negativos, que apenas anotam inadimplências, e não o histórico de relacionamento dos clientes com os mais variados fornecedores.
Sejamos honestos. O tal cadastro "positivo" nada mais é do que uma forma de criar bancos de dados de preferências pessoais, algo que é bem difícil com a lógica dos cadastros negativos, que apenas anotam inadimplências, e não o histórico de relacionamento dos clientes com os mais variados fornecedores.
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