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Duplo choque

O primeiro choque foi ver o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul encampar tal causa. O segundo, foram as ultrajantes decisões judiciais contra a investida do MPF-RS.

A Procuradoria da República em Rio Grande interpôs uma ação civil pública (2009.71.01.001049-6) no dia 9 de junho de 2009 contra a Fundação Universidade Federal do Rio Grande - Furg para impedir a medonha política do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. de impor a presença de estudantes de Medicina nos atendimentos médicos, mesmo quando o paciente se demonstre desconfortável com tal prática; o caso prático da ação é uma gestante de alto risco que se sentiu constrangida com a presença de um bando de gente que não é médica olhando suas partes íntimas.

O que se segue é a legítima exposição dos quadros da dor na Pinacoteca dos Horrores. Primeiro, temos a sentença do sr. Rafael Wolff. Trechos dessa beleza:
No caso em tela, contudo não constato que o atendimento médico em hospital universitário, feito com a presença de estudantes de graduação ou de médico residentes, sob a supervisão, respectivamente, de professores e preceptores, possa violar o direito à intimidade dos pacientes.

Nesse sentido, afigura-se imprescindível para o deslinde da presente demanda a diferenciação entre o constrangimento e a quebra da intimidade, porquanto o primeiro é sentimento de ordem subjetiva, o qual nem sempre é decorrência da objetiva violação à vida privada, caracterizadora do segundo item.
Sr. Wolff, privacidade não é exatemente igual a tratamento de dados! Privacidade é habilidade que cada ser humano tem em controlar o fluxo de informações que lhe diz respeito, e isso inclui o poder de impedir tal fluxo. Agora, se tais informações estão a salvo por terceiros, não quer dizer que não houve a violação de privacidade. Quanto ao segundo item, eu tenho uma ideia: que tal tu fazeres um exame de próstata observado por mais pessoas do que seu urologista e me dizer se isto é constrangedor ou não.
 
Depois, Wolff vem e cita o Código de Ética Médica:
Logo, o fato de algum paciente, eventualmente, sentir-se constrangido em ser assistido por um estudante não implica dizer que sua intimidade esteja sendo devassada, até porque o atendimento prestado é feito sob o manto protetivo do sigilo profissional, o qual é garantido por diversos dispositivos do Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução CFM n° 1.246, de 08 de janeiro de 1988, em especial os seguintes:
Grandes coisa o Código de Ética Médica. O que está em discussão aqui não é a capacidade de manutenção de sigilo por parte de estudantes de Medicina. A discussão é sobre a liberdade do paciente em decidir quem acompanhará o procedimento médico. Então, Wolff, tuas inúmeras citações são irrelevantes ao caso, nada mais são do que uma tentativa de desvio de tópico em conjunto com a mais pura encheção de linguiça. Assim é encheção de linguiça a citação da Resolução 663/75 do Conselho Federal de Medicina, que diz o seguinte:
CONSIDERANDO que o estudante de Medicina deve ter a oportunidade de participar, sob supervisão, de atos e procedimentos médicos para atingir sua execução num grau de eficiência e perfeição desejada;
Wolff, oportunidade não é obrigação! E o negócio não para por aí:
Assim, entendo que o estudante de medicina, ao atender um paciente ou participar de um procedimento, ainda que tenha por escopo o aprendizado médico, já está a atuar regrado pelas mesmas normas éticas que balizam o exercício da medicina, de sorte que não se pode presumir pela existência de risco de divulgação de dados íntimos do paciente, como presumido no depoimento de fl. 23 deste feito.

Por outro lado, a exclusão da participação dos estudantes em procedimentos médicos, quando o paciente alegar constrangimento, além de lhe negar o aprendizado da melhor forma, estará, por via transversa, prejudicando o próprio direito à saúde, pois estará impondo óbices à formação dos futuros profissionais de medicina, a qual demanda efetivo contato com a prática médica.
Pela 122.589.694.852ª vez, Wolff vem com essa ladainha de vazamento de dados. A seguir, Wolff elabora uma teoria bizarra que o não-consentimento do paciente, seja pessoalmente, seja por vias judiciais, atrapalharia o ensino da Medicina. Devo supor então que aqueles que nunca se dispuseram a ficar pelados na frente dum bando de gente que tu não sabes sequer o sobrenome estariam conspirando contra o progresso do ensino da Medicina no Brasil (só faltou o Wolff dizer que isto não passa de uma conspiração da CIA contra o ensino de Medicina na Furg). Aliás, desde quando os pacientes são responsáveis pela qualidade do ensino de Medicina? Podem os pacientes dar notas para os estudantes? Expulsá-los, se for o caso. Logo a seguir, Wolff dá um nó na lógica:
Também não está sendo ferido o direito de acesso à saúde, pois, em momento algum, foi negado o atendimento a pacientes, mas apenas condicionado esse atendimento à participação de estudantes de medicina, como forma de aprimorar seus conhecimentos técnicos, da maneira que prevê o artigo 207 da Constituição Federal, ou seja, mediante a indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão, por parte da Faculdade de Medicina, a qual está vinculado o hospital da requerida.

Outrossim, verifica-se a partir dos documentos juntados pelos Hospitais Universitários que a participação dos estudantes de Medicina nos atendimentos realizados é imprescindível para a aprendizagem, restando assim, inviável a realização de internações e procedimentos nestes estabelecimentos sem o acompanhamento de estudantes e residentes dos cursos das áreas médicas.
Meu Deus do Céu! Quando tu condicionas atendimento médico a presença de sei-lá-quem (que não é médico) então tu estás negando atendimento médico, o que de fato ocorreu. Presença essa totalmente irrelevante para a prática clínica, aliás, caso tu não saibas, Wolff, é possível sim ser atendido sem ter a presença de 578.985 estudantes de Medicina à tua volta, estudantes esses que sequer devem ter assinado um termo de confidencialidade.
 
Agora, temos o golpe de misericórdia:
Ademais, na ocorrência da colisão entre direitos fundamentais deve-se sempre priorizar o bem maior em detrimento de um direito individual. No presente caso, o bem maior está representado pelo ensino médico de qualidade, o qual trará benefícios a toda coletividade, por refletir no direito à saúde.

Deste modo, não há como se pensar em facultar ao paciente, que procura atendimento em hospital de ensino, a opção pelo atendimento sem o acompanhamento de estudantes e/ou residentes.
Ora, se o bem maior deve ser sobrepor ao direito individual, porque não exigir que as pessoas façam provas de si mesma? Quero saber a prova científica de relação de casualidade entre presença forçada de estudantes de Medicina em atos médicos e qualidade de ensino. O pior de tudo é que o sr. Wolff não cita os trechos da Constitução que falam sobre privacidade nem aquele que diz que ninguém será obrigado a nada, salvo em caso de determinação legal. Onde está a lei dizendo que uma pessoa para ser atendida em hospital-escola tem que abdicar de sua privacidade? Wolff vai tão longe ao ponto de dizer que uma pessoa não sequer o direito de dar ou não o consentimento para estudantes de Medicina acompanhar atos médicos. E, gente, Wolff, não descansa:
Quanto ao artigo 110 da Resolução CFM n° 1.931/09, que aprovou o novo Código de Ética Médica, entendo não ser ele aplicável ao caso dos autos, por ser direcionado ao profissional de medicina, e não à instituição hospitalar de ensino.

Isto porque diversos profissionais médicos que exercem também a atividade de magistério podem, quando atendem seus pacientes em seus consultórios ou em hospitais públicos ou privados (que não sejam hospitais de ensino), ter casos interessantes de compartilhar com seus alunos.

E é justamente nesses casos que se aplica o referido dispositivo da Resolução CFM n° 1.931/09, que veda ao médico que submeta seus pacientes à exposição de seus casos no exercício da docência, sem consentimento.

Contudo, quando o paciente procura a instituição hospitalar de ensino para receber atendimento, já está ciente que, por sua natureza, haverá participação de estudantes nos procedimentos, não havendo que falar em consentimento pessoal ao profissional de medicina.
De novo, grandes coisa! "[P]or sua natureza." Olha bem o que diz o art. 110 da dita resolução:
Art. 110. Praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado.
O artigo simplesmente demole qualquer argumento que Wolff tenha citado. Então, a teoria absurda da falta de necessidade de consentimento de Wolff é desmentida pelo Código de Ética Médica. Aliás, o Código proíbe discriminação por negação de consentimento, o que foi o caso. E para encerrar:
Interpretação contrária implicaria em violação ao direito à saúde e ao ensino, de sorte a tornar o dispositivo inconstitucional. Logo, outra alternativa não resta senão a sua leitura sob o prisma da constituição.
O cidadão cita o art. 207 da Constituição mas não cita o art. 5º, inciso X, que ao contrário da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão (uma bizarrice da bizarra Constitução brasileira), é cláusula pétrea. Então, seria lógico deduzir que o direito a intimidade e privacidade se sobrepõe ao direito à saúde (que foi negado) e ao ensino (que já foi garantido pelos impostos, sem o consentimento, óbvio).

E se a tragédia não fosse bastante, temos o agravo de instrumento. A Procuradoria Regional da República da 4ª Região, vendo esta medonha decisão, interpôs um agravo de instrumento (2009.04.00.032205-5) perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A decisão da Dra. Maria Lúcia Luz Leiria também é uma coisa triste de se ler, embora sem a embromação de Wolff. Leiria repete os mesmos argumentos de Wolff, o que não faz sentido  colocar no texto. O curioso de Leiria foi este trecho:
Assim, o cidadão que pretender ser atendido apenas por médico formado sem a presença de estudantes, não deve buscar atendimento em hospitais-escola, uma vez que estes são o corolário de uma formação médica integral que reverterá para a melhoria da saúde pública.
Claro, e quem não quiser viver numa jurisdição onde juízes estão pouco se lixando para o direito duma pessoa tem de escolher quem a acompanhará num exame médico, que se mude de país. 

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