No post anterior, eu falei sobre a versão 3.0 do Cadastro Único, o CU, que atende pelo nome atual de Registro Civil Nacional. Uma das novidades da disCUssão® sobre o CU 3.0 é a oposição corporativista ao CU 3.0 propriamente dito e a quem deve ser confiado o nosso CU.
Uma das novas brigas que surgiram pelo CU 3.0 dos brasileiros é entre Dias Toffoli e Julio Lopes, o relator do PL 1775/2015. O PL, de autoria do desgoverno Dilma Rousseff, diz que o CU 3.0 dos brasileiros será administrado pela Justiça Eleitoral, pois essa coleta ilegalmente informações biométricas dos eleitores brasileiros. O Sr. Lopes, por sua vez, quer que a Receita Federal administre o CU 3.0. E, felizmente, o impasse está gerado. O Globo reporta:
O debate sobre identidade única para o brasileiro gerou acirrada discussão entre autoridades dos três Poderes na última quinta, na comissão especial da Câmara que analisa o projeto do Executivo que cria o Registro Civil Nacional (RCN).
O negócio foi um petardo atrás do outro. O Sr. Lopes, inacreditavelmente correto, disse temer pelo exemplo venezuelano, que confia o CU dos venezuelanos às autoridades eleitorais daquele país. Autoridades essa conhecidas pela perseguição política. Entretanto, esta é a defesa do CU 3.0 via Receita Federal do Sr. Lopes:
Temos que tomar cuidado para não se criar a “carteirobrás” no Brasil — disse o parlamentar. — O CPF é o mais seguro. E já está no cotidiano. Quando se hospeda num hotel, é o número do CPF que você apresenta; se vai comprar remédio controlado, é o CPF; no comércio é o número do CPF o da nota fiscal. Se há fraudes, vamos corrigi-las. Não há sistema inexpugnável, nem no Pentágono.
Traduzindo para o português: o Sr. Lopes quer que todas as interações dos brasileiros com os setores públicos e privados tenham apenas uma única chave de identificação. E é bem irônico que o Sr. Lopes venha a falar da inexistência de sistemas inexpugnáveis, pois certamente a Receita Federal não o é! Escutado essa resposta, o Sr. Toffoli retorque afirmando que "[a] sala com esses dados é à prova de bomba atômica". Considerando o risco da Coreia do Norte jogar uma bomba atômica em tal sala, esta característica arquitetônica é irrelevante já que é possível fazer coisa muito pior sem colocar em risco a estrutura predial da sala.
Só que o melhor está por vir. O subsecretário de Arrecadação e Atendimento da Receita, Carlos Roberto Occaso, sugeriu a integração entre os dados da Receita Federal com os institutos estaduais de identificação. Segue abaixo o que ocorreu após essa sugestão:
— Só quero dizer que esse projeto foi encaminhado pela presidente da República. A Receita Federal, que integra o governo, é contrária ao projeto enviado pela presidente?! — disse Toffoli.— Não, de jeito nenhum — respondeu Occaso.— Fui convidado para debater com deputados. O debate com o Poder Executivo fiz junto à Presidência da República — disse Toffoli.— Abro mão de falar — afirmou Occaso.— Pode encaminhar por escrito através do ministro Joaquim Levy — disse Toffoli, referindo-se ao ministro da Fazenda, ao qual a Receita Federal está subordinada.
Nem o desgoverno federal tem uma opinião única sobe o CU. E essa gente ainda quer ter em mãos os nossos dados pessoais.
Aproveitando que estamos usando O Globo, trago duas reportagens daquelas. Olha como começa a reportagem que fala sobre o PL 1775/2015:
Embora ninguém discorde da urgência de um sistema de identificação civil mais seguro no país, para emitir uma espécie de novo RG do brasileiro, falta consenso sobre como isso deve ser feito.
Considerando que eu não sou ninguém, já há um erro nessa afirmação. E vou além. Não apenas sou contra um "sistema de identificação civil mais seguro", como sou contra um "sistema de identificação civil", seja ele qual for. Antes que tu perguntes, sim, é uma reportagem sem o nome do autor... E de brinde, O Globo traz uma reportagem sobre o CUsto de não termos o CU.
O subtítulo da reportagem já dá seu nível, "[g]olpes que usam documentação falsa chegam a custar R$ 11 bi ao país". Esse número é proveniente dum estudo comissionado pelo Ministério da Justiça chamado de Custos econômicos e sociais de falhas nos sistemas de identificação individuais. Estudo esse indisponível no SlideShare do Ministério da Justiça e que só verá a luz do dia quando o Ministério da Justiça responder o meu pedido de acesso à informação.
O subtítulo esquece de colocar a seguinte informação, que está na reportagem:
No país dos desvios bilionários descobertos em rebuscados esquemas de corrupção, os custos decorrentes desse tipo de fraude vão de R$ 5,82 bilhões, num cálculo conservador, a R$ 11,53 bilhões ao país. A estimativa do prejuízo foi calculada em estudo inédito do Ministério da Justiça em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), usando dados de 2012, base mais completa disponível.
Estamos falando de uma estimativa que varia 98,11% em relação ao número mais conservador. E temos ainda que nos basear no pressuposto que a metodologia e os dados estão corretos. E mais, tendo tudo isso, tem que haver uma relação de nexo causal entre a fraude e a inexistência do CU, seja qual for sua versão. Lendo abaixo, podemos ter uma certa noção da metodologia do estudo:
A apresentação dos resultados em intervalos largos se deve a “poucas fontes de dados” sobre crimes ligados ao processo de identificação segura no país, diz a introdução do estudo.
Não sei porque a expressão "poucas fontes de dados" deixou-me ainda mais curioso sobre esse estudo do Ministério da Justiça. Outra metodologia que me deixou curioso é esta:
O delegado Joás Rosa de Souza não tem cálculo pronto, mas garante, pela experiência como diretor da Divisão de Repressão a Fraudes da Polícia Civil do Distrito Federal, que o rombo é grande.(...)— Um país como o nosso, em pleno século 21, ter institutos de identificação em cada estado que não se comunicam é uma falha grosseira e inadmissível. Basta uma certidão de nascimento falsa para o criminoso tirar, em outro estado que não tem a digital dele armazenada, uma identidade com nome diferente. E uma identidade legítima, com papel timbrado do Estado.
É assim que funciona. Tu não tens os números, mas tu sabes que o número inexistente comparado com outros números desconhecidos demonstra um rombo grande, numa proporção que ninguém conhece. E quanto a tal "falha grosseira e inadmissível" de comunicação, é importante lembrar que, tradicionalmente, a identificação é de competência dos estados, então, só poderia haver "falha grosseira e inadmissível" se não houvesse comunicação dentro do estado em que houve a identificação. E trago a opinião do Sr. Pereira, secretário-executivo do Ministério da Justiça:
Mas o representante do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira, argumentou que seria inconstitucional obrigar os estados a aderirem ao sistema unificado, o que levou inclusive à modificação da lei, que previa inicialmente um número que unificaria todos os documentos.
A tal "falha grosseira e inadmissível" na verdade é uma cláusula pétra da constituição federal. E quem aparece na reportagem? O Sr. Pereira! Na linha Colombo (ou Leif Ericsson) descobriu a América, o Sr. Pereira nota que os vários documentos no Brasil têm funções diferentes. E, novamente, há a confirmação que o CU 3.0 serve para rastrear as pessoas:
O custo estimado da falta dessa centralização dos dados é enorme, sobretudo nas relações privadas, de consumo. Há uma dificuldade enorme de apurar se a pessoa é, de fato, quem ela diz ser. É preciso termos uma base única para que essa checagem seja feita de qualquer parte do país.
Era uma vez um acordo com a Serasa Experian e o Tribunal Superior Eleitoral que permitiria tal checagem. Era uma única vez, pois esse acordo foi para a lata do lixo. E isso que o acordo sequer vislumbrava acesso a dados biométricos. Lembrando também que a Serasa manifestou-se contra a ideia de proteção a dados biométricos no projeto de lei de "proteção" de dados pessoais. 1+1=2 e tu sabes qual será o resultado de um banco de dados biométricos na mão do TSE. Até porque o PL 1775/2015 permite tal intercâmbio de informações. É so ler o artigo quinto e, em especial, seu parágrafo único:
Art. 5º Fica vedada a comercialização, total ou parcial, da base de dados do RCN.
Parágrafo único. O disposto no caput não impede o serviço de conferência de dados prestado a terceiros.
Não é possível a venda, mas o aluguel por temporada é jogo limpo.
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